O pensamento alegórico de Paul Valéry
Claudio Daniel
A escritura poética de
Paul Valéry utiliza como principal recurso composicional a alegoria, ou
representação do pensamento por meio da sucessão de metáforas, conforme
definição de Quintiliano (CAMPOS, 1978: 16). Segundo René Waltz, essa figura é
“uma espécie de máscara aplicada pelo autor à idéia que se propõe expressar”
(idem), e não por acaso é recorrente nas fábulas e parábolas tradicionais. A
figuração de conceitos abstratos por imagens concretas, porém, implicava certa
cumplicidade entre artista e público, que compartilhavam o mesmo repertório de
símbolos, tal como ocorreu na iconografia cristã do período barroco, em que as
imagens de animais, flores e frutas, bem como as cores, letras e números
relacionavam-se a valores éticos e espirituais.
Como ilustração, podemos citar o quadro O cordeiro pascal, da
pintora portuguesa Josefa d’Óbidos, onde a cor branca significa a pureza, o
cacho de uvas representa o vinho eucarístico, o próprio cordeiro indica o
messias crucificado e assim por diante, com correspondências simbólicas na
poesia praticada por autores do período, como Sóror Maria do Céu, tal como
estudado por Ana Hatherly em O ladrão cristalino. Já na poesia de Paul
Valéry, e em especial na trilogia formada por O cemitério marinho, A
jovem parca e Esboço de uma serpente, embora ele utilize símbolos e
mitos conhecidos do imaginário ocidental e um vocabulário comum na poesia
simbolista francesa de linhagem mallarmeana, não é empresa fácil identificar de
modo preciso sua correspondência no plano das idéias; esta é uma escrita
cifrada, enigmática, que renunciou à tentação da legibilidade, optando por uma
voluntária imprecisão ou rarefação do sentido. O pensamento do autor é expresso
numa música verbal quase abstrata, em que as imagens são turvadas por um
deliberado hermetismo. As narrativas poéticas são urdidas fora de planos
reconhecíveis de tempo e espaço (daí a preferência do autor pelo ambiente
atemporal dos mitos), o cenário é mínimo, a ação dramática quase inexistente e
os personagens dos poemas recordam os heróis de Mallarmé: são representações de
idéias, não de pessoas ou emoções. Nos três poemas que citamos de
Valéry, escritos conforme as técnicas de versificação tradicionais, com o uso
da métrica, das rimas e figuras como a assonância e a aliteração, a
paronomásia, encontramos esse drama alegórico estático, cujo princípio deriva
de composições mallarmaicas como L’après-midi d’un faune, Hérodiade
e Igitur, peças de um teatro intelectual que só podem ser representadas
na imaginação do leitor, “que monta ele mesmo as coisas” (MALLARMÉ,
1984: 11).
Em Ébauche d’un
serpent (Esboço de uma serpente), iniciado em 1916 e publicado pela
primeira vez em 1921, na Nouvelle Révue Française, Valéry reinventa o
mito bíblico narrado no livro da Gênese, num “monólogo burlesco”
(CAMPOS, 1984: 19) declamado pelo Demônio, desencantado com a obra do Criador.
Conforme Pierre-Olivier Walzer (idem, 17), a peça é dividida em três partes: a)
julgamento das obras de Deus (estrofes I a XII); b) recordação da queda da
primeira mulher (estrofes XIII a XXVII); e c) invocação à Árvore do
Conhecimento e conclusão (estrofes XXVIII a XXXI). A evolução narrativa do
poema é sinuosa, marcada por uma contínua mudança de tom; conforme Walzer, esse
inusitado monólogo
é sarcástico na primeira
parte, muitas vezes suave na segunda (...), passa por todos os estágios da voz
humana, da ternura à cólera, do desafio à hipocrisia, da eloqüência à persuasão,
da tristeza ao orgulho, do grito à argumentação, numa ironia quase contínua.
Desse ponto de vista, é o mais rico poema de Charmes. (idem)
A serpente, personagem solitária no poema, rompe a previsível monotonia
não apenas com as metamorfoses da fala, mas também com as imprecações que
dirige ao Sol, ao Criador, a Eva e à Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal,
conferindo certo dinamismo dramático ao poema, que não pode contar com o
recurso do diálogo. Quanto à estrutura poética, Esboço de uma serpente é
formada por um conjunto de 31 estrofes, cada uma com dez versos, com métrica
octossilábica e uma variedade de rimas cruzadas, enlaçadas e diversas outras
combinações. As aliterações são ricas, sobressaindo a sonoridade consonantal em
s, que segundo Augusto de Campos “marca a sibilação irônica da Serpente,
às vezes dissimulada pelo jogo mais doce de outros amálgamas sonoros” (idem,
18). Nesse meticuloso artesanato semântico, prossegue o tradutor, “não falta o
próprio espelhamento do nome de Eva (“ces évasives couleuvres”,
“l’oisive et l’ève suave”, “Qui
jeta l”Ève en rêveries”) (idem, 20). A
severidade da forma e o cálculo rigoroso dos efeitos (que derivam de Mallarmé,
do Princípio poético e da Filosofia da composição, de
Edgar Allan Poe) nos fazem lembrar da observação de Edmund Wilson: “O poema
(para Valéry) é um intrincado problema intelectual, uma luta contra condições
auto-impostas — vale dizer, acima de tudo, algo construído” (WILSON, 1985: 63).
Para Valéry, não é o conteúdo do poema, nem talvez a forma
que importe, mas o método, o processo de criação do poema, como estudo
da linguagem e de si mesmo. O autor se impôs as regras de criação mais estritas
da poética clássica, com apuro na escolha da semântica, do rimário e na
invenção metafórica, atento a uma lógica imaginativa ou analógica que reside,
conforme análise de João Alexandre Barbosa, no “encontro de relações (...) entre
coisas cuja lei de continuidade nos escapa (BARBOSA, 2004)”. A alegoria
valeryana é estabelecida na junção imprevisível de signos, convertidos em
enigmas verbais. Essa síntese entre a precisão da forma e a imprecisão do
sentido remete-nos novamente a Edgar Allan Poe, que no Princípio poético
define a poesia como “construção precisa do impreciso”, e ainda ao método
compositivo do autor norte-americano, centrado no cálculo preciso dos efeitos.
Para Valéry, no entanto, o método não é um meio, mas o próprio fim
na criação do poema, já que “o verdadeiro pensamento não é adaptável ao verso”
(CAMPOS, 1987: 30), como o autor diz em carta de 1917 a André Fontainas.
Dentro desse labirinto especular estético-conceitual, qualquer tentativa
de decifração do sentido referencial é uma jornada temerária, mas, ao mesmo
tempo, uma aventura fascinante. Segundo Robert Monestier,
Valéry parte de um mito
bíblico — o Demônio, sob a forma de uma serpente, que ele reveste, segundo a
Gênese, no Jardim do Éden, censura a Criação, porque ela é um erro de Deus, um
‘defeito na pureza do Não-Ser’: ela destrói a eternidade e a unidade de Deus.
Ele odeia o homem e o perverte, insinuando-lhe o Orgulho, para vingar-se do
Criador. Com júbilo amargo, rememora como seduziu Eva. E desafia a Árvore do
Conhecimento a dar outra coisa que não sejam frutos de morte (CAMPOS, 1984:
16).
A dimensão existencial e
metafísica do poema nos remete, novamente, a Wilson, para quem “o conflito
implícito entre as leis absolutas da mente e as contingências limitadoras da
vida — opostos impossíveis de dissociar um do outro — é, como digo, o tema real
de seus poemas” (WILSON, 1985: 60). O conflito entre a Serpente e o Demiurgo,
nessa linha de reflexão, pode ser entendida como a tensão entre a inteligência
e a sensualidade ou o estar no mundo, com sua inevitável cota de prazer e dor.
O pessimismo filosófico de Valéry, para quem “o universo não é mais do que um
defeito na pureza do Não-Ser” (CAMPOS, 1984: 21), é similar ao sentimento de
decadência de muitos poetas franceses do final do século XIX, como Villiers de
l’Isle Adam, e recorda ainda o Fernando Pessoa que, com a máscara de Bernardo
Soares, escreve no Livro do desassossego: “Viver parece-me um
erro metafísico da matéria, um descuido da inação” (PESSOA, 1982: 174). Convém
citar nesse ponto que Valéry foi contemporâneo de importantes eventos
históricos, como as duas guerras mundiais, a revolução russa, o crash da
Bolsa de Nova York, as lutas operárias, o surgimento da psicanálise, do
feminismo, que não aparecem, em momento algum, em seus poemas, num deslocamento
da história em favor do mito. Essa atitude, que numa leitura superficial
poderia indicar uma fuga da realidade, uma reação aristocrática de desprezo ao
mundo, pode ser vista, no entanto, sob outro ângulo, como um gesto de repúdio e
asco a um tempo desumanizado, como foi o seu e ainda é o nosso. O poeta,
descrente em soluções políticas, órfão de religiões ou sistemas ideológicos,
refugia-se na leitura, no estudo e na criação de poemas, conforme a sua ética pessoal, obedecendo a uma “arte
de recusas”, na frase feliz de Augusto de Campos (CAMPOS, 1987: 14). A recusa
se estendeu ainda ao próprio fazer poético, já que Valéry passou vinte anos sem
produzir nenhum poema, entre 1897 e 1917. Durante essas duas décadas de
ausência de escritura — “je guillotinais intérieurment la litterature”,
escreveu o poeta em 1912, em carta a Albert Thibaudet (CAMPOS, 1987: 27) —,
Valéry realizou, no dizer de Wilson,
o “estudo de si mesmo, por
si só”; a compreensão dessa atenção e o desejo de traçar-se claramente a
natureza de sua própria existência são a única coisa que o interessa agora. Durante
esses anos, ele escreve a Introdução ao método de Leonardo Da Vinci e
inventa seu personagem mitológico, M. Teste. Tanto Leonardo Da Vinci como M.
Teste são, para Valéry, símbolos do intelecto puro, da consciência humana
voltada para si mesma. (...) Preocupa-o um conflito particular: o conflito
entre aquela parte da existência humana representada pela abstração de M. Teste
e a que submerge nas sensações, que é distraída pelos acidentes do mundo
cotidiano. (WILSON, 1985: 55)
Este embate entre o Eu e o Mundo, já tematizado no Esboço de uma
serpente, é retomado em La jeune parque (A jovem parca), escrito em
1917, com 512 versos alexandrinos, que é talvez o poema mais complexo de
Valéry. Numa carta a Georges Duhamel, datada de 1929, o autor diz:
Este poema (que se chamou A
jovem parca) tem todas as aparências dos poemas que se poderia ter escrito
tanto em 1868 como em 1890. Tudo se passa como se a guerra de 1914-1918,
durante a qual ele foi feito, não tivesse existido. E no entanto eu, que o fiz,
sei muito bem que o fiz sub signo Martis. Eu não o sei explicar a mim
mesmo, mas não posso conceber que eu o tenha feito senão em função da guerra.
Eu o fiz na ansiedade, e meio contra ela. (...) Não havia nenhuma serenidade em mim. Penso portanto que
a serenidade da obra não demonstra a serenidade do ser. Pode acontecer, ao
contrário, que ela seja o efeito de uma resistência ansiosa a profundas
perturbações, e responda, sem a refletir em nada, à expectativa de catástrofes.
(CAMPOS, 1987: 30-31)
O conflito que percorre todo o
poema, composto de 16 fragmentos sem uma linha narrativa seqüencial linear, é
de esfera psicológica: o monólogo da jovem parca relata o pugilato entre o
despertar da sensualidade (provocado talvez pela picada simbólica da serpente,
símbolo já presente no poema anterior), a consciência da fugacidade de todas as
coisas e o desejo do aniquilamento, vencido afinal pelo impulso da vida. Todos
estes movimentos contraditórios estão anunciados já no título do poema e da
personagem, já que as parcas (Cloto, Láquesis e Átropos), filhas de Júpiter e
Têmis, que regem o nascimento, a velhice, a doença e a desaparição de todos os
seres, são normalmente representadas como velhas, e aqui a tecelã da
morte aparece como uma jovem, solitariamente instalada num rochedo à
beira-mar. O fluxo de consciência, no poema (que recorda, em parte, o conhecido
monólogo de Molly Bloom, no Ulisses de Joyce), ocorre de maneira
aparentemente confusa, desordenada, como se acontecesse no estado do sonho (não
por acaso, a ação tem início à noite, como indica o segundo verso, em que as
estrelas são chamadas de diamants extrêmes). Luiz Costa Lima aponta a
duplicidade
que marca desde o exórdio o
desenrolar do poema: duplicidade entre a consciência sensual e a “consciência
consciente”, entre a mulher antes do episódio da serpente e a parca de depois,
a parca à beira do suicídio e a que aceita a vida etc. Os estados duais não se
seguem segundo algum fio cronológico (...), como se o autor pretendesse
acompanhar o fluxo e o refluxo, a passagem instantânea de um estado de
consciência para outro (LIMA, 2003: 198).
Conforme declaração do próprio
Valéry,
imaginem que o assunto
verdadeiro do poema é a pintura de uma série de substituições psicológicas,
e em suma a transformação de uma consciência durante uma noite. Tentei, o
melhor que pude, e ao preço de um trabalho incrível, exprimir essa modulação de
uma vida (CAMPOS, 1987: 28).
Essa descrição de eventos mentais
numa linguagem altamente elaborada, com uma vagueza e imprecisão quase
abstratas, aproxima-se das sensações provocadas pela música ouvida em concerto. Numa
carta escrita em 1917 a
Albert Mockel, diz Valéry:
Fazer um canto prolongado,
sem ação, nada a não ser a incoerência interna nos confins do sono; colocar aí
tanta intelectualidade quanto eu puder e a poesia possa admitir sob os seus
véus; salvar a abstração próxima pela música ou resgata-la pelas visões, eis o
que eu terminei por me resolver a tentar (Idem, 29).
Numa carta de 1922 a Aimé Lafont, o autor
diz ainda:
Você observará também que o
talhe do poema pode lembrar uma obra musical. A noção de recitativos do drama
lírico (a uma só voz) me perseguiu. Eu vejo, por exemplo, um começo de ato
nestes versos: ‘Mysterieuse Moi, pourtant tu vus encore’. Confesso que
Gluck e Wagner foram meus modelos secretos (idem, 30).
Os paralelos com o teatro musicado,
e em especial com a “obra de arte total” wagneriana são evidentes: o uso da
alegoria como base da narrativa; a sinestesia; a saturação semântica, numa
luxúria estética barroquizante; a dialética entre amor e morte; e a criação de
efeitos psicológicos pela sonoridade, entre outros pontos de contato. A unidade
mínima da orquestração valeryana, nesse poema, é o alexandrino, “mesmo tipo de
verso usado por Racine”, como lembra Augusto de Campos, mas “com uma alta
porcentagem de assonâncias e aliterações”, (idem, 35) além do amplo uso de
rimas internas, trocas vocálicas e consonantais e da
metáfora elíptica, por fusão
(...), figuras de linguagem — elipses, aposições, inversões, hipálages, que
tendem a afastar o verso, ainda que forçado à estrutura discursiva, das
categorias da logicidade, induzindo o pensamento a se organizar por
justaposição e coordenação. (idem, 39)
O rigor construtivo do poeta
francês, ainda que herdeiro de procedimentos estéticos e do estado de espírito
dos autores simbolistas, coloca-o já no centro da modernidade,
em que se foram cada vez
mais acentuados os conflitos entre a sintaxe discursiva, emprestada à prosa, e
a linguagem propriamente poética, fulcrada na paronomásia e nos procedimentos
associativos — nas relações formais de proximidade e semelhança entre os
vocábulos. (idem)
A música poética de Valéry, ao
dissolver as noções de tempo e espaço no ambiente atemporal do mito e
substituir o pensamento lógico-linear por uma sucessão de movimentos
psicológicos em imagens cifradas, realiza uma operação radical na linguagem,
que “já não remete ao referente e à sucessão diacrônica que lhe emprestavam
segurança”, (LIMA, 2003: 195), materializando o ideal de uma poesia pura,
definida por Valéry não como “pureza moral”, mas como “uma idéia essencialmente
analítica” (BARBOSA, 2003: 264) e como “linguagem dentro da linguagem” (VALÉRY,
1991: 208). Em seu conhecido ensaio Poesia e pensamento abstrato,
incluído nas Variedades, o autor francês compara a prosa ao caminhar e a
poesia à dança: enquanto na primeira haveria um “objeto preciso” e uma
“finalidade”, na segunda, o sentido do movimento é o próprio movimento (idem,
212). Estudando as formulações valeryanas, João Alexandre Barbosa define a
poesia pura como “uma espécie de materialismo lingüístico fundado na
experiência com os deslocamentos incessantes entre som e sentido, limites e
possibilidades da atividade poética” (BARBOSA, 2003: 265). O poeta desloca a
história, a verdade, o cotidiano, enfim, o sentido assimilável do poema, em
favor da alquimia verbal, radicalizando a trajetória de seus antecessores do
movimento simbolista. Em Littérature, texto de 1929, o poeta diz:
“Enquanto o interesse pela prosa é exterior a ela mesma e nasce do consumo do
texto, no poema o interesse não o abandona nem dele pode se afastar. A poesia é
uma supervivência”. E ainda: “A poesia não é mais que a literatura reduzida ao
essencial de seu princípio ativo. Foi purgada das ilusões realistas e de ídolos
de todo tipo; do possível equívoco entre a linguagem da verdade e a linguagem
da criação etc.” (VALÉRY, 1984: 12). A verdade do poema, para Valéry, é o
próprio poema: o sentido é a sua intrincada arquitetura verbal.
O projeto de uma metapoesia, que
coloca Valéry no olho do furacão das discussões da poesia contemporânea, obteve
seu resultado mais conhecido, talvez, em Le cimitière marin (O cemitério
marinho), de 1920. O título do poema remete ao conhecido cemitério de Sète,
comuna francesa localizada nas proximidades do mar Mediterrâneo e lugar de
nascimento do poeta. Apesar dessa circunstância, podemos pensar no título
“Cemitério marinho” como um expressivo oxímoro, já que cemitério remete
a rigidez, imobilidade, decomposição, finitude e outras idéias associadas a
Madame Lamort (Rilke), enquanto marinho indica imagens mentais de
fluidez, mobilidade, vitalidade e ainda o devir temporal, representado pelo
fluxo das águas de um rio, no conhecido adágio de Heráclito. A junção ambígua
desses dois termos resume o tema-chave da peça: o embate entre o impulso vital
e a ânsia de aniquilamento (tensão já poetizada na Jovem parca e uma das
obsessões de Valéry). A epígrafe de Píndaro — “Ó minha alma, não aspira à vida
imortal, mas esgota o campo do possível” (Píticas, III) dialoga com a
antítese apresentada no título e com as oposições entre céu e mar, absoluto e
relativo, palavra e silêncio, luz e sombra, vida e morte, que darão a tônica ao
poema, numa linguagem cada vez mais cifrada. A narração desse monólogo
antitético ocorre ao meio-dia (enquanto na Jovem parca sucede à noite);
a voz do narrador não é identificada, nem mesmo por um artifício mitológico:
pode ser o próprio poeta, a consciência consciente, o destino universal
ou qualquer outro sujeito interpretado na hermenêutica, não havendo qualquer
pista clara no texto poético. O cenário se limita à proximidade do mar, “sempre
recomeçado”, onde esse misterioso eu faz a sua meditação sobre a impermanência
de todas as coisas (“como no gozo o fruto se dissolve / (...) sorvo aqui o
futuro dos meus fumos, / E canto o céu, à alma que consumo, / As margens que em
rumores se transformam”, na tradução de Jorge Wanderley). A primeira estrofe
tem início com uma imprecação ao céu, chamado de “teto tranqüilo”, e, mais
adiante, de “tesouro estável”, “templo de Minerva”, “templo do tempo” e outros
epítetos, em associação com imagens idílicas de pássaros e pinheiros, mas
também de tumbas, que prenunciam as dúvidas manifestadas ao longo do poema
sobre a permanência da vida, o futuro, a imortalidade e outras questões
metafísicas, cujo clímax acontece nas estrofes 21 a 24, com a citação da
aporia de Zenão de Eléia sobre a corrida entre Aquiles e a tartaruga (“Zenão,
Zenão de Eléia, desumano! / Feriste-me de um dardo alado e insano / Que voa e
está inerte nos espaços!”, ainda conforme a tradução de Wanderley), numa
metafórica negação do movimento como progresso linear. O paradoxo desesperançoso é superado na
última estrofe, onde o narrador afinal aceita a existência (“Há que tentar
viver”), vencendo o niilismo e o desejo de absorção pelo Vazio. Neste poema, que tem merecido diversas
interpretações filosóficas (a despeito da pouca importância dada pelo autor ao
“conteúdo” de seus versos), temos algo muito próximo à “comédia do intelecto”
sonhada por Valéry, distinta da comédia teológica de Dante e da comédia social
de Balzac por enfocar as aventuras da consciência humana, conforme diz João
Alexandre Barbosa em Paul
Valéry e a comédia intelectual (BARBOSA, 2003:
252).
O Cemitério marinho é uma
das composições mais elaboradas de Valéry, que escreveu nada menos que três
versões do poema, conforme diz Barbosa no ensaio Leitura viva do cemitério,
com diferenças que vão
desde o número das estrofes
(7, 10 e 23) até variantes fundamentais de versos que hoje parecem
absolutamente intocáveis. E L. J. Austin afirma que Valéry via o que hoje
chamamos de versão definitiva — esta que o leitor lê agora — como ainda um
esboço daquilo que merecia correções, acréscimos, diminuições. (VALÉRY,
1984: 53).
O poeta organizou o
Cemitério marinho em 24 estrofes de seis versos, num total de 144 linhas; é
uma peça de extensão mais reduzida — ou concentrada — do que o Esboço de uma
serpente, e o metro utilizado foi o decassílabo, não o alexandrino, mais
solene, empregado na Jovem parca. A escolha da estrutura métrica
empregada na orquestração do Cemitério marinho, bem como o processo de
criação do poema, foram justificados nos seguintes termos:
Quanto ao Cemitério
marinho, essa intenção primeiramente foi apenas uma imagem rítmica vazia,
ou cheia de sílabas inúteis, que veio me obcecar por algum tempo. Notei que
essa imagem era decassilábica e refleti um pouco sobre esse tipo tão pouco
empregado na poesia moderna; parecia-me pobre e monótono. Era quase
insignificante perto do alexandrino, elaborado prodigiosamente por três ou
quatro gerações de grandes artistas. O demônio da generalização sugeria que se
tentasse levar esse Dez à potência do Doze. Ele me propôs uma
certa estrofe de seis versos e a idéia de uma composição baseada no
número dessas estrofes e consolidada por uma diversidade de tons e de funções
que lhe serão destinados. Entre as questões deveriam ser instituídos contrastes
ou correspondências. Essa última condição logo exigiu que o poema possível
fosse um monólogo do “eu” (...). Era preciso que meu verso fosse denso e muito
ritmado. (...) O tipo de verso escolhido, a forma adotada para
as estrofes davam-me condições que favoreciam certos “movimentos”, permitiam
certas mudanças de tom, solicitavam um certo estilo...O Cemitério marinho
estava concebido. Um trabalho bastante longo veio a seguir. (VALÉRY,
1991: 173-174).
Nesta sucinta confissão, Valéry
expôs um aspecto notável de seu método de compor poesia, qual seja, a
formulação de um problema prévio cuja resolução será a própria execução do
poema. O exercício racional se manifesta não apenas na adoção da forma métrica,
que define o ritmo da composição, mas também na escolha e distribuição das
rimas, que seguem a seqüência AABCCB, onde, conforme João Alexandre Barbosa, “B
é sempre masculina, isto é, aguda e oxítona, e as demais femininas, isto é,
graves ou paroxítonas” (VALÉRY,
1984: 54-55). Podemos supor que até o
vocabulário do Cemitério marinho, as imagens, metáforas e citações,
enfim, todos os elementos presentes no poema tenham sido pensados previamente,
como um exercício intelectual ou equação do espírito, próprios de um Monsieur
Teste que fez do artesanato poético o modelo ideal de seu pensamento, voltado à
organização racional das coisas e ao estudo de si mesmo. Valéry fez da poesia uma síntese pessoal
entre a matemática e a filosofia, que permanece até hoje, para os seus leitores
e críticos, como uma esfinge misteriosa, desafiadora e fascinante. O Cemitério
marinho é um dos poemas capitais do século XX, ao lado da Terra
Devastada, de T. S. Eliot, dos Cantos, de Ezra Pound, das Elegias
de Duíno, de Rilke e de outros monumentos do alto modernismo, mas
talvez seja o menos influente na poesia contemporânea. Valéry não foi um
inventor de formas, ao contrário, sua dicção simbolista sugere a alguns uma
posição anacrônica, deslocada na era do jazz, da psicanálise e do cinema;
Valéry teria sido um último aristocrata do século XIX, ao lado de Rilke, ou
mesmo um epígono de Mallarmé, segundo Blaise Cendrars (FAUSTINO, 2004: 367),
com poucas relações com o espírito moderno. Todas estas considerações,
parcialmente verdadeiras, não anulam a contribuição de Valéry, aliás de
inequívoca modernidade: a visão do poema como um processo racional, guiado por
um método e pelo cálculo preciso dos efeitos;
a escolha meticulosa de todas as ferramentas com que o poeta irá
trabalhar — do arcabouço métrico-rímico à semântica, à invenção metafórica e à
própria extensão da peça, temas que estão presentes no pensamento e na prática
poética de um dos maiores poetas brasileiros do século XX, que aliás
dedicou-lhe um poema, chamado A Paul Valéry, no livro O Engenheiro,
de 1945: o pernambucano João Cabral de Melo Neto.
Claudio Alexandre de Barros Teixeira é mestrando em Literatura Portuguesa
na Universidade de São Paulo (USP). Publicou, entre outros livros de poesia e
ficção (com o pseudônimo de Claudio Daniel), Sutra (1992), Yumê
(1999), A Sombra do Leopardo (2001) e
Figuras Metálicas (2005).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
BARBOSA, João Alexandre. A
biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
BARBOSA, João Alexandre. Reflexões
sobre o método, in revista Zunái, www.revistazunai.com.br, 2004.
CAMPOS, Augusto de. Paul
Valéry, a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984.
CAMPOS, Augusto de. Linguaviagem.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CAMPOS, Geir. Pequeno
dicionário de arte poética. São Paulo: ed. Cultrix, 1978.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis
e modernidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2003.
FAUSTINO, Mário. Artesanatos
de Poesia. São Paulo: ed. Companhia das Letras, 2004.
HATHERLY, Ana. O ladrão
cristalino. Lisboa: Cosmos, 1997.
MALLARMÉ, Stéphane. Igitur,
ou A loucura de Elbehnon. Trad.: José Lino Grunewald. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
PESSOA, Fernando. Livro
do desassossego, por Bernardo Soares. Lisboa: ed. Ática, 1982.
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. São Paulo: Editora Globo, 1999.
VALÉRY, Paul. O cemitério
marinho. São Paulo: Max Limonad, 1984, 2a. ed.
VALÉRY, Paul. Variedades.
São Paulo: Iluminuras, 1991.
WILSON, Edmund. O castelo
de Axel. São Paulo: Cultrix, 1985.
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