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Mostrando postagens de novembro, 2020

DOIS POEMAS DE PAOLA SCHROEDER

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  BAILAORA   Entre duas águas minha língua nada vale. Encantadora de peixes:   desnuda, molhada.   Desejo mergulha no vácuo de meus seios. Tantas pernas, tantos olhos revirando seixos.   Aganju gira em meu epicentro nossa moeda intacta na borda.   Pacífico me abre a boca desdentada. Nada de timoneira;   minha proa largada.   Corais que me comem as pernas, onda feito manta. Seu olhar transcorre as cordas de minha garganta.   A mim nem os passos, nem os dedos Para você, bailaora... nunca mais terra.   Ela se faz sereia, me encanta. Não me importo de me afogar   LUNDU   Filho destoa da pele, das orações de sua mãe.   Segue rumo ao abismo sem documentos.   Na cintura o cassetete brilha mais do que a arma.   Sociedade agarra a supremacia nos dentes   feito cão de boca espumosa que balança a carne.   As vendas não servem justiça mira com olhos viciados.   O sonho, se vivo, precisa ser levado   com for

SEIS HAIKUS DE LOURENÇA LOU

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  * aos gritos da juriti o fogo ilumina a noite ano novo no sertão   * sob sol de verão sertanejo tropeça nos pés carrega a vida nas costas   * rosas se abrem sob carícia da chuva fina alegria de primavera   * contra a correnteza peixes pulam tempo de piracema   * devagar o caranguejo vai marcando areias lusco-fusco de primavera   * telhados alçam voos nos morros da cidade tempestades de janeiro  

UM POEMA DE EDIR PINA DE BARROS

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  GENTE BICHO   Recuperado o pergaminho dos tempos, restauradas outras camadas muito mais antigas por detrás dos mitos, a origem das origens.   Tempo em que bicho era gente e gente era bicho e se refletiam nos espelhos das águas do perspectivismo.   Somente os xamãs que sabem voar nas asas dos ventos, falar a língua das onças e dos mortos podem traduzir seus sentidos.   E recolocar através dos ritos, a pretérita humanidade dos bichos, a animalidade dos homens gente-bicho-gente-bicho na circularidade dos tempos na reflexão sobre a vida.   Outro olhar sobre o outro sem as lâminas da barbárie

UM POEMA DE CARVALHO JUNIOR

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  SOL NEGRO o sol negro na casca do bacupari bebe o núcleo de silêncios da semente do alvorecer.   o sol negro na casca do bacupari deixa um rastro de criança no quintal, borrado, de papel carbono.   o sol negro na casca do bacupari é um lampião, invisível, de tamuatás e inhapins.   o sol negro na casca do bacupari é como um riso de cecília, bruna e greta em revelação ao menino-azul.   o sol negro na casca do bacupari é uma escada de vidro, grávida, de incandescências.

DOIS POEMAS DE JORGE AMÂNCIO

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  O PELE DE VIDRO   no céu purpúreo os pássaros vítreos ) arco-íris em voo, saíam das chamas refletiam no preto do asfalto o ballet do fogo   no largo do paysandu uma cratera vulcânica iluminava a igreja dos pretos o quilombo de vidro derretia o aço concreto ardia em perdas   na madrugada de primeiro de maio o pele de vidro desabou quietude fumaçaria 90 minutos 24 andares 146 famílias   sem teto     EMPÁTICO   1 Com o sapato folgado uma flor na mão um pingente carmim desenhado na testa, correu para abraçar o pai. Carpido com um soco, um braço fraturado e lagrimas mudas   (meninos não choram) a dor do macho a sete chaves   2 Ao entrar no elevador os brancos diziam: fora daqui. Na sala recém-comprada no sétimo andar um negro se tranca no escritório conta até dez e soluça antirracista (chorar é empático) lágrimas barbadas morfinizam a dor   3 Em volta do pau (egóicos par

DOIS POEMAS DE JOSÉ COUTO

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EL CANTADOR para Antônio Torres ninguém entende que língua falam os poetas só eles acariciam o que sentimos antecipadamente suas letras misturadas são beijos na madrugada em que subitamente despertamos e ficamos ouvindo barulhos dos bichos noturnos seus versos polinizam sementes do não-tempo sobre os delicados, marginalizados, ilegais, gauches apaziguando desconcertos ninguém sabe o que sonham os poetas se bússolas ou mapas os guiam só visualizamos na neblina turva o corte sutil exposto em sua pele de onde emergem metáforas alucinadas cantigas memoriais que são e não são travessias palavras escritas na água dos rios reverberando verdades que ora unem, ora separam ninguém quer saber qual seu tema a fonte que jorra a imaterialidade forjando suas incertezas ninguém capta suas preferências pelas sobras, restos, miudezas em detrimento ao esplendor da glória das estrelas ninguém se comove ao ver seu olhar perdido talvez em um longínquo entardecer quando entendíamos a linguagem dos pássaros a

UM POEMA DE MARLI FRÓES

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  PEDREIRA DE XANGÔ   sair de Aruanda fazer flauta da face animal tocar a raiz chegar na   raiz ancestral   não respirar dói.. dói salve machado do pai xangô!   canto-raio rasgará as vestes as peles   dos homens que seguem cartilhas da violência   não respirar dói.. dói salve machado do pai xangô!   mortalha   do negro veio dos navios negreiros hoje sudário dos excluídos...   embrulha os estômagos   acende todas as dores de uma sociedade em restos mortais   não respirar dói.. dói salve machado do pai xangô!

UM POEMA DE EWALDO SCHLEDER

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BEM ME QUER um poema surdo  e mudo escapa à órbita das palavras   dia à dialética dial léxica espiral inspiral química fina sambaqui museu pedestal de conchas monumental rabo no quintal das sereias    compota de flores da última primavera bem me quer  a jardineira mal me quer o jardim desfolhado

UM POEMA DE SIDNEI OLÍVIO

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  1 poesia é a privação do silêncio prefaciou o poeta em seu roubo. o silêncio que agora é quase insuportável quando a mão escassa de palavras adia qualquer possibilidade. a obsessão do gesto se antagoniza ao deserto dos papéis repetidamente embolados. nenhuma imagem provê a necessidade do verbo. nenhum rumor. nenhuma lembrança. nenhum influxo repentino.  2 à beira do colapso o eremita se projeta no parapeito e atira letras esparsas palavras improváveis frases desconectadas grafadas amiúde nas folhas amassadas. uma atmosfera ready made jamais prevista por tzara além da espontaneidade do espetáculo.  (na madrugada um gari aleatoriamente mistura o catado e não fosse pelo sono de mecenas se tornaria poeta). poeta acidental.

UM POEMA DE ALÊ SAFRA

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  garotas de botecos sujos. fantasmas de rua. cansativas. eu amei tantas de vocês pelo tempo de algumas cervejas e cigarros.  ofendi o amor e procurei perdão oferecendo o melhor de mim. canalhas são contraditórios. acho.  caminho pelo centro à tarde depois de uma reunião. estou cansada. puxo a cadeira num bar qualquer. peço cerveja, quatro cigarros soltos e balas de cereja. olho o movimento. quantas mulheres em situação de rua, penso. fico mais deprimida. meus olhos encontram a garota que vende chips de celular no calçadão. ela ri e olha para a cerveja. ofereço um copo. é um trabalho tão ruim quanto o meu. esses trabalhos estragados que nos castigam.  e a garota sabe disso. bebemos. reconheci o brasil resumido em nós. dividimos um sanduiche de mortadela. fiz minhas piadas toscas para ela rir. paguei a conta. ela me beijou na boca e não correspondi. agradeci a companhia. às dezoito j á estava em casa: pipoca, netflix, uma aspirina e esse amargo que afago sem reagir.

UM POEMA DE SIDNEI OLÌVIO

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  MUNCH a ponte minha sina instante onde rima o limite (transito:) a dois passos do espaço a uma sílaba do grito vigília nos pequenos vãos das grades vão-se  grandes desejos universos relativos e inúteis tentativas de se alcançar as chaves : viver é ser prisioneiro do mundo adágio para uma nova manhã o sol com seu fausto sorriso no holocausto da tarde recompõe a noite (sem alarde) PROCESSO DE POVOAMENTO uma nova manhã surge lentamente sobre o dia preguiçoso o sol na altura da cabeça  acorda meus olhos às nuances do jardim e arredores um mosquedo de drosofilídeos rodopia a casca de banana arremessada sobre a calçada  uma nuvem de libélulas sobrevoa a piscina ao lado ávida pelos mosquitos um enxame de abelhas zunindo em uníssono poliniza a pitangueira em flor (uma solitária vespa carrega a imóvel lagarta para o seu ninho de barro) um quase cordão de formigas escraviza afídeos em tenros brotos refastela-se do açúcar o trânsito na rua inaugura a hora com automóveis se enfileirando  no cruz

UM POEMA DE EDIR PINA DE BARROS

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  A brisa da madrugada já brinca com as relvas e os pássaros pipilam, anunciam o novo dia...   A canoa já está no porto o rio nos espera agora a espreguiçar suas águas no leito rendado de areia.   As capivaras e as pacas devorarão todo o milho plantado para o batizado e não haverá mais festa...   Sem batizar o milho não haverá fartura e um novo e longo eclipse abraçará nossas vidas...   E escuta a delicada brisa que murmura em segredo os cânticos sagrados das vozes ancestrais...   Ou eterno será o sono no poço fundo do tempo onde moram agonias da escuridão dos inícios...   Acorda   UM POEMA DE CARVALHO JUNIOR   Animália   I. {Lagarta}   livros, luas e licores nas frestas da noite. a sala sob a luz de infâncias remendadas. giram piões de banzos sobre os azulejos. a salamandra ancestre dança a casa inteira. relâmpagos de lágrimas se perdem no olho. tudo é música dentro do turvo da memória. a manhã a