O caminho da flor e da pedra — A Rosa do Povo, de Drummond
Eu o amo, mas vivo, não múmia.
Sem o verniz dos florilégios-catacumba.
— Maiakóvski
Ator e autor de um teatro
pessoal de obsessões e labirintos, que convoca toda sorte de paisagens,
partituras e jogos de pensamento, Drummond realizou, em A Rosa do Povo (1945), uma das obras capitais da poesia moderna brasileira. Seus movimentos
oratórios, como falas dramáticas de liturgia profana, exploram as
possibilidades do lirismo, indo do grave ao passional, do irônico ao patético,
conquistando, em seus momentos mais altos, um tom quase épico, diamantino. É
uma lírica radical, de ruptura, que reflete um tempo de conflitos, belicoso, e
também sinaliza um percurso de construção poética, de exploração de territórios
lingüísticos que superam as fronteiras do próprio modernismo. Essa confluência
de águas do registro histórico e da saga textual tem um exemplo notável no
poema Nosso Tempo, uma das peças mais
conhecidas do volume: “Este é tempo de partido, / tempo de homens partidos.
(...) / Os lírios não nascem / da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se / na
pedra. (...) / Tenho palavras em mim buscando canal, / são roucas e duras, / irritadas,
enérgicas, / comprimidas há tanto tempo, / perderam o sentido, apenas querem
explodir”.
Em vez do melodismo
ingênuo, melífluo das “estrelas alfas” e “virgens cem por cento”, da oralidade
popular, da crônica de costumes bem-humorada, Drummond optou, nas composições
mais expressivas desta coletânea, por outra estratégia semântica — a prosódia
dura, metálica, corrosiva, que apaga a ilusão, a “aura” de poesia elevada,
mesclando-se à prosa, ao mesmo tempo em que desfaz a suavidade e a singeleza
dos croquis ingênuos e sentimentais. O engajamento político e estético de
Drummond, a sua “faca só lâmina”, manifesta-se no tom crítico, na escolha do
léxico, nos cortes abruptos e ágeis, na sobreposição de imagens contundentes,
no alinhamento de metáforas vigorosas e nos temas retirados do entorno
temporal. Por vezes, há quase um expressionismo, sem abdicar dos contrapontos
da linguagem, dos jogos de anáforas e metonímias: “Em verdade, temos medo.
Nascemos escuro. (...) / Cheiramos flores de medo / Vestimos panos de medo. /
De medo, vermelhos rios / vadeamos. (...) / Ajudai-nos, / lentos poderes do
láudano. / Até a canção medrosa / se parte, se transe e cala-se”.
A expressão do
deslocamento no mundo e em si próprio, esse feeling
de estar à margem, ou fora de foco, não substitui o engenho do poema, o
artesanato elaborado, a loucura da linguagem. Ao contrário, para dizer a sua
angústia, a sua alegria e o seu medo o poeta utiliza as palavras como forças
mágicas, telúricas, encantações, que vibram em seu vigor verbal. Poeta culto,
com controle consciente dos recursos da escritura, Drummond, em seus picos
epifânicos, está mais próximo do brado futurista de um Maiakóvski do que da
imagem cândida de “bom velhinho”, ou
poeta convencional, bem-comportado, que muitos gostariam que ele tivesse sido.
Felizmente, não foi. Longe de se
confinar à imagem habitual de retratista do cotidiano, confessional e coloquial,
prosaico e tributável, criada a partir de suas peças de circunstância, Drummond
foi um artista sério, dedicado a uma arte séria. O poeta alçou seu olhar em
múltiplas direções, do soneto ao poema experimental, praticando peças de arquitetura
severa e construtiva, como os versos admiráveis de Áporo, um dos momentos mais altos de A Rosa do Povo (e do conjunto de sua vasta obra): “Um inseto cava /
cava sem alarme / perfurando a terra / sem achar escape. / Que fazer, exausto,
/ em país bloqueado, / enlace de noite / raiz e minério? / Eis que o labirinto
/ (oh razão, mistério) / presto se desata: / em verde, sozinha / antieuclideana
/ uma orquídea forma-se”. O impacto das imagens imprevistas, da música concisa
e atonal e da estranheza da construção metafórica, nessa peça que é quase uma
adivinha ou paradoxo, recordam a fase madura de Murilo Mendes (Convergência, Siciliana, Tempo Espanhol)
e o melhor João Cabral, evidenciando a perfeição formal do mestre, que não pode
ser reduzido a leituras sociológicas ou existenciais, tão comuns na crítica
universitária.
É no plano estético, mais
do que em qualquer outro, que convém situar a obra de Drummond. Exatamente
nesse ponto a aproximação com o vate cubo-futurista russo é mais explícita: a
reivindicação de novas formas estéticas para a expressão do protesto social,
pois “sem forma revolucionária, não existe arte revolucionária”. Distante da
farsa que nega a história, invocando a apropriação acrítica do passado,
travestido de presente à maneira drag
queen, Drummond expandiu o eu lírico a uma dimensão coletiva, dentro de uma
perspectiva social emancipadora. Todo o esforço de amortecer ou ocultar a veia
crítico-criativa de Drummond, transmutado em ícone de uma poética oficial e
canônica, desmorona frente aos poemas de maior inquietação do autor, espalhados
como pontos luminosos em seu cancioneiro, desde Alguma Poesia (1930), seu vôo inaugural.
Quantos nomes, em nossa
literatura, foram capazes de versos tão inventivos e provocativos como os de No Meio do Caminho (publicado, aliás, no
n. 1 da Revista de Antropofagia,
editada por Oswald de Andrade)? “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma
pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma
pedra. / Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas
tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra /
tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.” Este
poema, talvez a obra-prima de Drummond, é uma síntese inquietante da arte praticada
pelo poeta: aqui estão os substantivos (logo, as coisas, a precisão da
escritura), o imprevisto que surge do
banal, o humor intelectual, a reflexão que vai além do próprio discurso e a
elaborada engenharia de palavras, muito além da facilidade, do conformismo e da
canonização.
O poeta mineiro poderia
repetir, junto com o seu colega russo: “Nós dois / contra o lirismo, / baioneta
calada, / buscamos / a nudez / da palavra precisa.” Este poema, construído a
partir do famoso verso inicial da Divina
Comédia, de Dante Aligheri (“No meio do caminho de nossa vida”) não retoma,
porém, qualquer esforço de metafísica; Drummond, órfão espiritual, tem o olhar
voltado à matéria, em sua rude plasticidade, em sua musical desolação. A
perplexidade, porém, é o sentimento comum que une Drummond ao mestre
florentino, cada qual em seu inferno particular. O diálogo com a saga dantesca seria retomado
num poema de alto fôlego, que está entre os maiores de nossa literatura: A Máquina do Mundo, que integra o volume
Claro Enigma (1951). Neste relato de
uma viagem interior, atemporal, a seu próprio mundo de alucinações e esquadros
(reflexo simultâneo desse outro mundo, que nossa mente julga ser real e
objetivo), Drummond responde a Dante em tercetos
urdidos num ritmo enfático, áspero, incisivo: “E como eu palmilhasse vagamente
/ uma estrada de Minas, pedregosa, / e no fecho da tarde um sino rouco / se
misturasse ao som de meus sapatos / que era pausado e seco; e aves pairassem /
no céu de chumbo, e suas formas pretas / lentamente se fossem diluindo / na
escuridão maior, vinda dos montes / e de meu próprio ser desenganado”.
Não vamos aqui aprofundar
a relação entre a viagem teológica de Dante e o mergulho existencial do
mineiro, paralelo sem dúvida fascinante, mas que exigiria um ensaio de maior
escopo. O que nos interessa, aqui, é explicitar, em linhas gerais, o caráter de
fabbro em Drummond, sua vocação
estética singular, seu processo de busca de construções verbais que vão além do
lugar-comum a que foi condenado por seus feitores intelectuais. O testamento
literário do poeta, sua profissão de fé, que vale toda uma poética, pela
extrema lucidez de conceitos, encontramos em A Rosa do Povo, no poema intitulado Procura da Poesia: “Não faças versos sobre acontecimentos. (...) O que
pensas e sentes, isso ainda não é poesia. (...) O canto não é a natureza / nem
os homens em sociedade. / Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada
significam. / A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.
(...) Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que
esperam ser escritos”. Numa época em que a reação conservadora contra a poesia
experimental busca em Drummond um modelo de dicção fácil e conformista, é
tarefa urgente o resgate da irreverência, da invenção e da rebeldia verbal
deste poeta que ousou ir além de si próprio, construindo uma das obras mais
densas e originais de nossa literatura.
P.S.: No poema Jubileu, de 1924, Maiakóvski imagina um diálogo com a estátua
de Púchkin, o vate entronizado nos salões elegantes da época, convertido em modelo
de uma poesia cosmética e afetada. Dirigindo-se à imagem do “príncipe dos
poetas”, Maiakóvski diz: “Serei / talvez / no fundo / o único triste / por não
tê-lo / mais hoje / entre os vivos. / Em vida, / nos teríamos entendido. / Mas
breve / estarei mudo / e inerme, e mortos, / seremos já / quase vizinhos (...).
/ Os meus contemporâneos? / Se quer que eu prossiga... / Trocá-lo / por
cinqüenta / seria mau negócio. (...) / É hora, / a aurora arregalou seus raios.
/ Vamos, eu ajudo, / de volta ao pedestal. / O vigia / pode vir / procurá-lo: /
na Avenida Tvierskaia, / você é figura habitual. / A mim, / a meu posto, / uma estátua é devida.
/ Dinamite: / — eu a explodo em detritos! / Odeio / a morte e seu mortiço. / Adoro
/ aquilo que é vida.” (Tradução: Haroldo de Campos)
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