DOIS POEMAS DE JOSÉ COUTO
EL CANTADOR
para Antônio Torres
ninguém entende que língua
falam os poetas
só eles acariciam o que sentimos
antecipadamente
suas letras misturadas
são beijos na madrugada
em que subitamente despertamos
e ficamos ouvindo barulhos dos bichos noturnos
seus versos polinizam sementes do não-tempo
sobre os delicados, marginalizados, ilegais, gauches
apaziguando desconcertos
ninguém sabe o que sonham os poetas
se bússolas ou mapas os guiam
só visualizamos na neblina turva
o corte sutil exposto em sua pele
de onde emergem metáforas alucinadas
cantigas memoriais que são
e não são travessias
palavras escritas na água
dos rios
reverberando verdades
que ora unem, ora separam
ninguém quer saber qual seu tema
a fonte que jorra
a imaterialidade forjando
suas incertezas
ninguém capta suas preferências
pelas sobras, restos, miudezas
em detrimento ao esplendor
da glória das estrelas
ninguém se comove
ao ver seu olhar perdido
talvez em um longínquo entardecer
quando entendíamos a linguagem dos pássaros
a solidão da pandorga
na voz infinitamente azul
do vento oscilando...
ninguém imaginou seu afeto
sua emoção, a paixão
com que recriou lembranças
a ternura que o invadiu
no dia que a mãe abençoou sua partida
levando no bolso
um pedaço da terra ressecada
o cheiro da chuva molhada
a umidade do sexo sem ruídos
os pés descalços da inesgotável trilha
não, ninguém reparou
quanto o poeta atravessou
a paisagem silencioso
abraçou e beijou os leprosos
lavou com sândalo
os pés das prostitutas
bebeu cachaça com os desvalidos
e sentou sua desventura na aridez da noite
AKIRA
oke arô poeta
eié apaocá!
voar às cegas
os olhos velados
voar assim
nuvens apaziguando
voar além
do jardim de hideko
oh poeta negro, índio
eis-me, banhai-me
agô agô ogã
oke arô karáio-nipô
kaô kabecilê
eparrêi êi êi
teu axé obi ori eboni
akira lá de olodê
soprou si ori xirê
akira lá no templo
de auá esbravejou
puta que pariu
puta que pariu
puta que pariu
Glossário
oke arô -salve grande caçador!
*
eié - pássaro
*
apaocá -árvore sagrada africana
*
kaô kabecilê- venham saudar o rei
*
agô - proteção
*
ogã - mestre
*
eparrêi êi êi - saudação ó iansã, és dona do meu axê
*
axé - força mística dos orixás, força vital
*
obi ori eboni -obi é um fruto indispensável em rituais do candomblé, também conhecido como Noz-de-cola, usado principalmente no ritual de Ori, Ebori, feitura de santo e Jogo de Obi adivinhação
*
olodê -senhor da mata, senhor da caça
*
si ori xirê - rodopiar, ou dança utilizada para evocação dos orixás conforme cada nação.
*
tupi-guarani
auá - avá – abá – homem – mulher – gente – índio.
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