DOIS CONTOS DE CLAUDIO RODRIGUES

EPIFANIAS PELA DOR




MISHIMA (1925-1970)

O santo.

Sob a luz da janela numa sala em penumbra o menino de coxas grossas dedilha um livro de capa dura com representações das pinturas dos mestres ocidentais. Abre uma página ao acaso e se depara com o santo. Sebastião crivado de flechas – os flancos do jovem forte sangram – coxas de homem furadas – o corpo cravejado de estrelas vermelhas – o sexo pulsa – a virilha – homens armados – línguas de fogo, ardentes anjos terríveis – flores de aromas excitantes – martírio, martírio, martírio – jogado às feras – homem e homem em luta sobre a cama como anjos que se enfrentam pelo amor divino, cheios do Espírito, cheios de espanto, cravados punhais. O menino bate uma punheta.


2

O escritor.

O corpo nu escreve o homem. O corpo se escreve. Um livro. A saga de um corpo. Um conjunto de corpos. Feitos de palavras. Signos.

O livro se publica. O corpo aberto do livro nu. Aos olhos dos corpos dos homens que o leem.


3. O fotógrafo.

A obturadora se abre e fecha rapidamente. A imagem é capturada. A cópia da cópia é perfeita! É um original. E será reproduzido em quantas outras forem necessárias.

Representa um samurai de flanco ardente, a sunga de pano branco, braguilha aberta como se preparado para o coito, enquanto as mãos seguras empunham o sabre para a auto execução.

A outra foto é o santo. O flanco nu. Cravejado de flechas. Os olhos esgazeados ardem de desejo pela dor do próprio corpo exposto.


4. A última cena.

O sabre penetra o corpo. Fura o fígado. Rasga os intestinos na direção do umbigo. Da boca sai um urro e uma flor de sangue.

Um amigo o degola.

É um fim honrado. Antes de tudo, uma decisão. O sabre, a mente, as mãos, o corte, o âmago estrelado, a luz no centro do crânio. Tudo centelha, tudo lâmina de luz, tudo luz. Uma noz.


O abismo e a vida por um fio.


SAN ERNESTO DE LA HIGUERA (1928-1967)


Para Luís Inácio Lula da Silva





Olhos abertos. Estrelas opacas. Cintilam.

Sombras. Sobras de luzes. Olhos opacos abertos cintilam.

As últimas sinapses.

A imagem de um homem se destaca. Os olhos nos olhos do outro homem. Aponta a arma. Uma rajada de tiros. A queda. Outra rajada. Está morto.

A humildade do corpo morto. O corpo cego. O corpo surdo. O corpo mudo. Os sentidos nulos. Porém, significa. A vida do corpo como o morto a viveu. A morte exemplar. A morte que se diz. A morte propaganda. Propaga a morte ela mesma. A morte símbolo. A morte metáfora. A morte mais que a morte, que é a vida.

O Cristo redivivo. A santa efígie de Jesus Cristo morto em uma urna de vidro. Sangram as feridas do deus martirizado. Os olhos estatelados. Estrelas opacas cintilam. Raios de luz iridescentes incidem por todos os poros. A sua aura. Barbas de Cristo. Longos cabelos de um nazireu. Abertos olhos de peixe-morto. Focados no nada. Só veem o deserto. Os milagres de suas mãos com o fuzil.



Dedos de fogo penetram as entranhas. Há uma dor que é de todos. A humanidade dos corpos que tombam. Uma leva de homens. Uma salva de tiros. Outra leva de corpos. Outra salva de tiros. Mãos atadas às costas. É preciso que estejam rendidos e não possam se defender. Homens encostados às paredes. Homens encostados às árvores. Homens desamparados e sós, sem nada a encostar. Apenas o abismo em que caem. Lhes assombra esses corpos. Foram homens. E tombam. Um a um. Dois a dois. Tantos quantos foram necessários. Já não enxergam. Nada sentem. Espantados. De olhos abertos eles morrem. A fuzilaria recomeça. Feridas do tamanho de um punho. Corações e outras vísceras.

Opacos olhos brilham ao sol da madrugada. Globos. Arregalados diante da morte, se enchem de sombras. São homens e tombam. Em suas retinas. Nos globos de vidro baço. Corpos sem nome. São números. São homens. Mãos amarradas às costas. A fuzilaria recomeça. Não se pode desperdiçar uma bala. Um fuzil para cada homem e um tiro em cada corpo. O cravo vermelho no centro do peito.

Ele sabe que é preciso. (Dói escrever isso.) Corpos jogados em valas comuns. Apagar aqueles nomes. Apagar homens e mulheres. Dizer não ao que representam. Definitivamente, não! E o limite é um tiro de fuzil. Um só. É preciso economizar. A fuzilaria recomeça. Os corpos tombam. Um a um. Dois a dois. Aos magotes. É necessário para a revolução. A revolução definitiva. A revolução constante. Para que não haja mais necessidade de revoluções.

Vazios diante do espanto. Diante do mundo, seus olhos de santo. Opacos, brilham. Diante deles, mais uma vez tombam os corpos dos homens. Um coração para cada tiro. À superfície de seus olhos baços. Claros lagos de águas mortas.

Um tiro é uma palavra. Um tiro é um poema. Um tiro é um coração furado. Um tiro é um dente lascado. Um tiro é um pai. Um tiro é uma mãe. Um tiro é um filho. Um tiro é um santo. Um tiro é uma boca. Um tiro é um nariz. Um tiro são dois olhos. Um tiro são duas pernas. Um tiro são dois pés. Um tiro são dois braços. Um tiro são duas mãos. Um tiro é o sexo. Um tiro é o ânus. Um tiro é o umbigo. Um tiro é o cérebro. Um tiro é uma bala a menos. É preciso economizar. A fuzilaria recomeça. Diante de seus mortos olhos de santo.



2

Quando se começa a morrer?

Os olhos captam o homem. À sua imagem e semelhança. A última cena começa. O cenário é uma sala de aula de uma escola pública onde está encarcerado. O homem entra com a manhã. É pela manhã que se executa uma pessoa. É dada a quem vai morrer uma última noite de insônia.

O homem é um índio. Olhares se cruzam. O deus que preside os encontros está presente. Olhos nos olhos. O homem e o homem. O que vai matar e o que vai morrer. 

_Você veio me matar, jovem?

_Sim!

E o homem que vai morrer se engrandece diante do homem que vai matar. Muito grande para ele era ele. A vertigem diante do outro. Diante do ato que vai cometer. O outro poderia com um movimento rápido lhe tomar a arma das mãos, mas não o faz. Paciente, espera. Sem tirarem os olhos um do outro.

O homem que vai matar se apequena diante do homem que vai morrer. Sente-se envergonhado pelo que vai fazer. O homem que vai morrer o observa. Tem pena do todo vitórias, de arma em punho, que treme diante do homem desarmado que executará. O espanto diante da morte. Respirar é difícil. Seu corpo sua. As mãos que seguram a arma tremem. Os olhos se esgazeiam. O homem diante do mito.

_Por favor, fique calmo! – Ele disse. – Você vai apenas matar um homem, não vencer uma guerra.

O homem se concentra, dá um passo atrás, posta-se à soleira da porta, engatilha a arma e solta a primeira rajada. O outro tomba com as pernas destroçadas, se contorcendo em um jorro de sangue. Uma segunda rajada lhe atinge um dos braços, o ombro e o coração.


3

O que seus olhos não viram:

_Suas mãos cortadas a pedido do amigo Juan Coronel Quiroga e mantidas em formol durante décadas.

_Seu corpo levado para o hospital de Vallegrande.

_Seu corpo exposto como um santo morto e as sombras dos camponeses passando em fila para o assistir. (Eis, um cão! Era a mensagem aos camponeses. É assim que acabarão se o seguirem! É assim que acabam os que o seguem. Continuem a ser o que são e se contentem com o que têm! Só o trabalho liberta! Não ousem levantar a cabeça acima de suas cervizes curvadas! Jamais serás além do que és!)

_Um tratorista ser acordado de madrugada pelos militares para abrir uma cova na pista do aeroporto da cidade e depois ser por eles ameaçado para que não revelasse o paradeiro do corpo e assim se apagar o seu nome e a sua memória.

_A sua ossada sem mãos encontrada trinta anos depois.

_E a foto de seu corpo emoldurado por seus algozes, como os olhos de Jesus Cristo morto.


4

Em março de 1967, chegou à Bolívia com um grupo de quarenta e quatro homens para organizar um levante como o de Cuba e impulsionar a Revolução na América Latina. Acamparam na fazenda de um militante comunista, mas foram delatados por desertores e o exército boliviano os atacou, mas em uma emboscada, o grupo venceu sem sofrer nenhuma baixa. Um segundo ataque do exército chegou ao mês de abril, quando os guerrilheiros os venceram mais uma vez. Mas foram novamente traídos, agora por um camponês de nome Honorato Rojas, que lhes armou uma emboscada no Vale Del Leso, onde toda a retaguarda do grupo foi morta. Vendendo-se pelos US$4.200 que a CIA ofereceu em recompensa por seu paradeiro, outro camponês, de nome Pedro Pena os traiu, levando-os a uma ravina chamada Quebrada Del Churo, onde o grupo foi cercado por uma companhia do exército dirigida pelo general Gary Prado. No dia 8 de outubro, em combate, foi atingido em uma perna e perdeu sua arma. Seu companheiro Willy (Simon Cuba) conseguiu retirá-lo da linha de fogo, mas os dois foram capturados por um jovem de nome Félix Rodríguez, treinado pela CIA para caçá-lo. Foram levados para o povoado de La Higuera, onde ficaram presos, cada qual em uma sala de uma escola pública. No dia seguinte, um rapaz de vinte e quatro anos, de nome Mário Terán, também treinado pelos norte-americanos, a mando do coronel Joaquin Zenteno Anaya e do vice-presidente da Bolívia, o ultradireitista René Barrientos Ortuño, os executou.


5

No povoado de La Higuera, departamento de Santa Cruz, na Bolívia, a quase dois mil metros acima do nível do mar sobre a cordilheira dos Andes, em pleno coração do século XX nasceu um santo novo. O santo vermelho. O santo marxista. O santo do povo. O povo que não sabe o que é direita ou esquerda, mas sabe que é povo. E assim como todo povo, sabe que pode erigir um santo novo assim que os velhos se desgastam. E a imagem de um santo é sobreposta à de outro.

Cabelos e barbas longas, uma história de ideais, paixões, viagens, lutas, privações, o martírio final, e está pronto o novo santo, à imagem e semelhança do próprio povo: San Ernesto de La Higuera.


 

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