DOIS POEMAS DE NILTON CERQUEIRA

 










RAVEN, EVEN MORE

 

jamais

o plano de pouso

do corvo na folha

abolirá o torto

acaso da escolha:

por mais fingida a dor infinda

deveras se demora

mais, ainda

 

SAGA AGUDA DE UM UIVO


I

sim, ouvi teu uivo, Allen!

 

senti o ritmo da tua falta de ar.

ofegante, saltaste degraus

escalada descendente

como seixo que rola

ladeira ocidental abaixo

 

foste, tu mesmo, o descaminho

acompanhado de bardos raros

brados mal-entendidos

em meio à hoste hostil

avessa a gretas buracos becos

 

horda oclusa

ao espaço expandido

das consciências retorcidas,

esculpidas em entalhes,

em delicadezas penetrantes

 

desfiguraste, Allen, a férrea ordem

corroída na ferrugem de um Eros

enfermo de tantos receios

desde muito cultivados

nas leiras ásperas da tradição

 

 

II

como haverias de saber, Allen?

 

estavas, também tu

(sempre em esquisitas companhias...)

justo ali, nel mezzo del camino

então aos trinta, e tão impróprio

a qualquer promessa ou glória

 

viste em estupor, Allen!

quedadas em campo, as melhores cabeças

da geração que traduziste

(da carne em verso, para as outras vindouras)

destruídas pela loucura

 

antes que a tua, Guinsberg

erguesse-se qual ectoplasma

envolvendo-te inteiro

naquela feérica noite

parida de estranhas certezas

 

soubeste fazer, a tempo,

da cópula intensa com infinitos,

glosa vasta.

do inconsciente a céu aberto,

rastro de inventos

 

 

 

III

num uivo levaste isto além, Allen!

 

extraístes, do êxtase, um escrito.

entre outros uivos, suicídios tantos

entrelinhas tortas precipitaram-se

(há! quão convulsos aqueles anos!)

livro moldura do incabível mudo

 

epifanias, como escapes contínuos

reagem à invasiva voltagem

daquela voz grave de Blake

alucinada densidade seminal

(teu espesso sêmen estava ainda fresco!)

 

qual verso Blake teria soado alto?

“a eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo”?

terá aquilo vindo direto do inferno?

tu ataste, em plena polução

um pedaço do eterno a ti

 

plasmado de espasmos

o tempo era fecundado enfim

sobrenatural ultra brilhante

(neste instante teu urro em mim atua!)

albergue opaco de um berro!

 

 

 

IV

que pode haver de maior ou menor que um toque, Allen?

 

Whitman o teria assim interrogado

(dedo apontado à corporal relva erótica)

trazes a resposta, Allen, na ponta da língua:

“a maior ternura que conheço é essa,

que está agarrada a meus ossos”

 

as ‘pequenas sensações’, que colheste em Cézanne

semeias nos sulcos de teus versos longos.

neste voto de uma vida, lampejos em ato

cessa o excesso que te devorava:

gemido grafado, salvo ao virar ‘uivo’

 

uma nesga de tua voz me toca

(improviso atonal quase inaudível)

bricolagem de estilhaços içados

soprando, em notas mansas

um mesmo novo verso

 

ouvi teu uivo, Allen, dizer SIM!

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