DOIS POEMAS DE JADE LUÍSA

 

 

I.

Ave gorda no campo de dentes-de-onça

galopa sobre as asas da libélula

espeta a boca da noite, lâmina

pergunta ao reflexo da água o porquê dos séculos

 

 

II.

Tufos de cabelo branco velam o breu

Voz de animal em fuga: sibilo verde-âmbar

Folhas de porcelana tombam, reverenciam

o soluço dos sapos, o choro das estrelas

 

 

III.

No manto faminto pela estética dos algozes

brotam mãos vulcânicas

unhas terrosas

pentelhos ruivos

coxas grossas de jequitibá

 

Despenca o fruto do topo da testa

parte-se ao meio feito cuia:

uma banda toca o sopro

enquanto outra morde a língua do céu

 

 

IV.

Calcanhar de barro

atravessa o pântano de ferro e lágrima

encharcado com nanquim

 

 

V.

Derradeiro regalo da noite

saliva das tetas anciãs

fogo estala

fêmeas uivam

 

 

SUSSURRO

 

Resposta ao não estar

 

Veja poeta: a água fala comigo

ela tece brotos nos cílios do rio

o corpo-estar mergulha na fenda

pesca a não-palavra

cozinha o som que era canto de água

 

O poeta come o cozido

transforma-se em corpo-poema, palavra

vê com os olhos da água

o beijo das raízes

a terra gozo

 

Escuta o escoar do sangue

e já não é sangue, é seiva

sente o medo dos peixes,

o silêncio das ovas

certo de que seu corpo já não existe

 

A água ri da memória curta dos poetas

por isso segreda contos

de todos os seres

de todas as eras

orna a pequenez em que nos banhamos,

os poemas em que estamos.

 

 

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