DOIS POEMAS DE MAURÍCIO SIMIONATO

 

 















SEM FLANCO, SEM GLÓRIA


Invisíveis são os heróis perdidos nas alegorias de reencontros tardios

e os desaparecidos na insensatez do dia a dia

como leite derramado 

no ralo da pia.

Punhos cerrados levantados para o alto 

aos que partiram por descaso, desleixo ou percalço,

que se foram num relance de dados.

Que voltaram da guerra na pele de outros soldados.

E aos abandonados nos campos, nos mares, nas sarjetas e nos hospitais.

Arados num solo estéril da indiferença.

Afogados em mares que viraram sertões de amor.

Enumerados em arquivos salvos nas nuvens.

Abraçados ao tempo para se tornarem terra da sua terra ao relento.

São heróis do além os apagados das memórias.

São heróis os que ficaram sem nome e sobrenome nos prontuários

Heróis en passant numa eternidade distante. Sem direito ao Adeus. 

Sem ter alguém alí,  logo adiante. 

Que dormem embaixo de marquises nas noites frias sem desejar matar ou morrer, 

mas só amanhecer o corpo diante dos olhos cegos da rua.

De foto com sorriso no porta retratos na sala que já não ė mais a sua.

A infância distante e desbotada pela última vez se cala.

Agora, sem gesto. Sem glória. Sem flanco e sem sombra.

Sem inimigos visíveis a olho nu para cantar a vitória no final. 

Mas o que é a vitória?

Podem ver, afinal, que os adversários eram imaginários.

Até mesmo aqueles que personificaram o mal.

Até os que se fizeram rês

neste insano curral

a acreditarem que as suas jamais seriam

as cabeças da vez.

Mas não deixemos tudo isso para depois.

Carrego na sacola, escrito num amassado papel de embrulhar pão,

os nomes dos bois.

A batalha final deixa sempre o vazio prostrado ao horizonte.

Não há mais homens e coisas para superar em teu front.

Nem mesmo os limites singulares dos ossos 

ou as botas sujas a cruzar a ponte.

Quando partem ao além, vibram alforria,

assim como os que restaram aqui, à revelia.

Conquistamos a sobrevida com monumental derrota

Perdemos para nós ao ganharmos um desconhecido presente como resposta.

Tudo é vencer prestes a raiar para sempre.

Como nunca, há gente a brilhar

como mil sóis!

São os que se foram

os vitoriosos no jogo de faz de contas das horas. 

Eles esperam em silêncio nas torres de apagados faróis.

Dos faróis que nos levam a avistar, apenas por mais um dia,

além, muito além dos heróis.


FÁBULA DE UM VERME


Era uma vez, mais um verme

que sabia que era verme,

mas usava disfarce de homem.

No fundo de sua alma viscosa, ele gostava mesmo é de ser verme.

Todo verme acaba por amar

a sua condição de verme. “E daí?”, ele diz.

O verme adora se comportar como um

                                                                     legítimo verme.

Agir com um, dissimular como um e mentir como um.

Sua sombra rasteja, apesar de o verme apresentar forma de homem. E coração de anti-homem. 

Ele se adapta facilmente ao meio dos vermes,

por estar travestido de homem.

E arrasta consigo alguns potenciais homens que o veem

como uma espécie de verme dos vermes

dentre os homens dos homens enviados por um deus qualquer.

Então, ele passa a ser "o" verme com vida de homem.

O verme com cara de homem é contagiante como um vírus.

Um verme é também virulento por natureza.

E também parasita, por natureza.

Ele vive justamente da natureza podre dos homens.

Subsiste no apodrecimento da

liberdade e dos ideais dos homens.

E vive a ilusão de reinar absoluto dentre os seus 

homens de estimação.

Por isso mesmo, os heróis dos vermes

são os homens torturadores-vermes-assassinos de outros homens.

Muitas vezes, ele deseja habitar as entranhas

dos vivos, mas o que ele gosta mesmo

é de homens sem vida, pois estes já não podem mais

ser inteiramente o que são.

Por isso, todo verme venera as ditaduras e é um fascista,

por natureza.


[[[[[[[[[[[[[


Rabo de galo


Extra!

Extra!

A democracia acabou!

Extra! Extra!

A

DEMO

C                                 

R

                                     A

C.I.A.

Chegou.

E o amanhã?

-- Continua sendo o mesmo amanhã que sempre jaz.

É botão de rosa no escuro.

Desabroche sem rumo.

Esplendor sem sumo.

Pétala que cai, uma 

                               a

                                  uma.

É desengano ao chão.

Extra! Extra!

É tempo de decomposição.

Tempo da Dita

Pelo não Dita

E ontem, Maria?

-- O ontem se anuncia nas mensagens de Whatsapp.

Extra! Extra!

Agora a coisa é ‘Dita’. &

É tão sutil quanto um sonho no pau de arara.  

Extra!                                   E      x          t                r                           a...

O futuro se foi com urgência.

E já não se consegue mais ser o que se é.

O hoje desceu pela goela com amargor,

que se desilude na garganta

feito dose de rabo de galo

sobre dose de rabo de galo

sobre dose de rabo de galo.


Quintal das horas


As pedras ao redor das árvores do quintal

escondem:

besouros telepatas.

cobras-cegas clarividentes

tatus-bola poliglotas

e filigranas de raízes cheias de som e fúria


A decomposição das horas

está no amontoado de folhas rasteladas 

anteontem, chão afora

para o lado do pé de amoras


A cantoria das aves 

fez ecoar acolá 

a badalada da Ave Maria, às seis em ponto, 

outrora ouvida.


Faz-nos aguar, na boca que queira.

Pensar a doçura do fruto 

Que brota naquela ameixeira.


E paralisada fica a existência 

No meio de qualquer tarde inteira

Em meio aos entulhos da ausência.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

POESIA

TRÊS POEMAS DE JORGE AMÂNCIO

NOVE POEMAS DE JORGE AMÂNCIO