UM POEMA DE JOSÉ COUTO

 


MÁQUINA DO MUNDO


nada se compara a esse entardecer

a lágrima do sol avermelha o rio

sem culpas esculpe desejos no silêncio


mas quem verdadeiramente se importa?


e no entanto essa beleza impregna de avessos

a delicadeza que finda na luz que se despede


tão pouco ofereceu esse dia que parte

talvez um minúsculo fragmento de folha

sendo levada sem rumo

pousou seu desvelo aos meus pés

e depois partiu em frêmito alucinante


mas quem verdadeiramente se importa?


entretanto agora nesse porto

esvaziado de opacidades

desprende cheiros familiares

algo não tangível

porém me escapa seu sentido

se há algum

transborda preso na garganta

do tamanho de um navio atravessado


mas verdadeiramente

alguém se importa?


a escuridão chega

e nos abraça implacável

vislumbro longe

às fragilidades que o mundo sussurra


despido do tempo que o dia me furtou

reparo nas indeléveis cicatrizes

que os cravos dilaceraram no centro das mãos


e nesse exato instante

revela-se a epifania das infinitudes

perfumes óleos avelãs

a mirra o incenso e o indecifrável


subitamente desaguam

desconcertantes


acendo o último cigarro

caminho sobre às águas turvas

anoitecidas sem compaixão


na margem orixás

babalorixás me saúdam

homens e mulheres registram nos celulares

ambulantes oferecem bugigangas


todos aguardam


antes de tocar as pontas dos dedos

na pele úmida do afluxo


uma esfera esdrúxula

circunspecta drummondiana

de cor incerta

emite permanentemente

um mantra stotram

cruza o céu de ponta a ponta

em porto alegre


mas me diga leitor

quem verdadeiramente se importa?

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