TRÊS POEMAS EM PROSA DE LOURENÇA LOU













ORQUÍDEA

antes do jantar, o menino leva um tiro. mulher é jogada pela janela. poeta toma um porre de desilusão. flor morre no asfalto.  minhas pernas fraquejam, por falta de vitamina d. a pandemia insiste, persiste, resiste.

tempos atrás, a salvação foi prometida por um novo messias, trazendo armas e um exército de impenetráveis intenções.

a vida não tomou novos rumos. a vacina comunista não é aceita em país fascista. idosos morrem sem oxigênio. meninos se perdem em cracolândias. mulheres são mortas mais depressa. minorias são a maioria dos desamparados. procissão crescente de perseguidos a carregar cruzes do avesso das leis. 

por entre as mãos escorrem lágrimas e detergente.  a pia se enche de impotência e indignação.  não me conformo em apenas chorar sobre a louça do jantar. drummond levou para sempre sua orquídea.


SEM BÚSSOLAS OU ÂNCORAS

teu fascínio não está na visão de meu corpo de iara, emergindo das águas. ou em meu cheiro de fêmea quando buscas vida no pulsar dos meus seios. nem no fogo da minha língua riscando vontades em tua pele de sol. 

tua loucura não está no que de mim consegues ter. te enlouquece é este teu querer de cordeiro inocente a implorar pelo altar dos sacrifícios. este prazer de me inventar e me alimentar para em seguida ser morto pela sarça ardente do meu prazer. te enlouquece é acompanhar a ousadia do meu olhar - esta ameaça constante à virgindade dos teus desejos. adivinhar esta sede a convulsionar o sangue em tuas veias e se imaginar a esvair-se pelos poros dos meus delírios. 

te encanta esta insegurança de nunca me teres além dos cantos em que te escondo. e apesar de não me teres, entregar-se por inteiro, sem bússolas ou âncoras, ao meu anseio de te navegar.


BAGAGENS

Na parede um velho e um menino olham impassíveis. Sobre o aparador, sorrisos em redomas de metal escurecido. Pela janela da cozinha entram lembranças. 

Montanhas e flores e cheiro adocicado de frutas. Som de piano a invadir a casa. A voz delicada da mãe acompanhada dos olhares amorosos do pai. Se havia choro, era às escondidas. Se havia tristeza, não sabíamos o que era. Havia barulhos de pés pequenos correndo pelo assoalho de madeira. E risadas, em diferentes decibéis, a entrar e sair pelas portas e janelas. 

Do lado de fora, uma escada se encostava à parede e nos levava ao nosso esconderijo. Uma casa de madeira, pintada de azul, em um enorme pé de manga rosa. Lembrava João e o pé de feijão. E outras histórias que Gerusa nos contava. Nossos suspiros rimavam com os finais sempre felizes de suas histórias. Nossa alegria pendurava-se nos galhos da mangueira como enfeites de natal.

No alto desta escada nos embriagávamos com o que víamos. Tudo era enorme e bonito. As montanhas, ao fundo, eram fortalezas a guardar nosso castelo. Carros eram carruagens, puxadas por cavalos de crinas e caudas reluzentes – os cachorros que viviam pelas ruas. Vendedores de verduras e entregadores de pães, eram príncipes que se casavam com gatas borralheiras. Personagens do Sítio do Picapau Amarelo dividiam conosco a casa azul. Gerusa era nossa tia Anastácia. 

O avô fumava e contava histórias de caçadores, seus perdigueiros e onças pintadas. Avó fazia poemas, geleias, pintava quadros coloridos. Distâncias não existiam dentro da casa. Crianças, tinha de todas as cores e de diferentes lugares. Comíamos em uma mesa comprida. Nossas mãos não alcançavam a comida. Gerusa coloria nossos pratos sob olhares do pai e da mãe. Não tínhamos escolha: verdura, verdura, verdura. Depois corríamos em busca da sobremesa. Mangas, goiabas, laranjas, araçás, jabuticabas - frutas maduras que tomávamos aos pássaros e borboletas.

Hoje há lembranças e uma casa. Uma inadequação. Um desperdício de metros quadrados em plena Savassi. São dezoito herdeiros e a loucura bilíngue das construtoras a cobiçar nosso paraíso infantil.


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