UM CONTO DE RITA COITINHO

 








CALDEIRÃO, ARMA DE GUERRA 

Seguindo a margem do Rio da Prata para o norte, em direção a Nova Granada, um grupo de ciganos recém-chegado de Cádiz passou por Assunção, oferecendo mercadorias de casa em casa. Dona Inez de Salvador, rica esposa de um estancieiro, estava mesmo à procura de uma panela grande para refogar os ingredientes da sopa paraguaia. Comprou o caldeirão sem negociar o preço. Naquela noite houve festa no acampamento cigano.

A panela comprada aos pagãos ficou com a católica família hispano-guarani por quatro ou cinco gerações. Cozinhou caldeiradas de peixe pintado e arraia; guisou carnes de caça e criação; refogou o recheio da sopa paraguaia, razão de seu primeiro uso. Perdeu a alça, por excesso de peso, e nesse dia virou todo o jantar, causando grande alvoroço e consternação. Consertado, de alça nova, frequentou os fogões a lenha da família por décadas até o dia da requisição.

O ferro fundido e refundido daquele caldeirão guardava a memória de geografias distantes. Os átomos outrora reunidos na forma de pirita ou hematita, fundidos a 2000°C e moldados em utensílios diversos, podem ter saído do solo da Groelândia, da península balcãnica, da Germânia ou da Grã-Bretanha, carregados por navegadores-guerreiros escandinavos.

Aquela porção de metal atravessou a vastidão do Velho Mundo moldada em forma de espada, passando de geração em geração. É possível que tenha sido outras vezes fundida e transformada em ferradura, arado, roda ou enxada em alguma região agrícola. De mão em mão, de ferreiro em ferreiro, circulou por séculos até parar, ao acaso, nas mãos de certo grupo de ciganos que seguiu da Romênia até a Espanha negociando utensílios diversos forjados em metal. O caldeirão de ferro fundido, grande e pesado, foi embarcado no Porto de Cádiz rumo a Buenos Aires, acomodado entre os caixotes repletos de trastes dos ciganos na tribo de Melquíades em alguma época já esquecida. 


A panela grande e pesada talvez tivesse permanecido com a família Salvador por mais algumas gerações, não fosse a guerra. Acontece que Solano López editara norma às famílias de Assunção: a luta contra o Império do Brasil e a Argentina estendia-se. Os ingleses agora recusavam-se a fornecer armamentos e, ainda que estivessem dispostos, as cargas não chegariam com o bloqueio dos rios. Tampouco havia recursos, a riqueza da nação guarani esvaia-se junto com o sangue de seus compatriotas. Era preciso forjar novos armamentos. Com o bloqueio fluvial, eram necessários grandes canhões, capazes de causar avarias à Marinha do Brasil.

A família Salvador atendeu prontamente. Perdidas já as vidas de dois filhos e um sobrinho em Paso Cuevas e Mercedes, tinham ainda esperança de que a guerra pudesse ser vencida e encerrada. Foi preciso uma pequena carroça, puxada por uma velha égua - tão idosa que não fora requisitada pelo exército - para levar todo o conjunto de pertences de metal reunidos pela família. Mas nenhum item causou tanta satisfação ao coletor quando o caldeirão. “Este aqui vai junto com o sino, para o canhão”. 

“O sino?” Houve agitação na fila dos que entregavam metais ao exército. “O que será feito do sino?”, perguntava-se, primeiro aos sussurros, depois em altos brados, em meio à grande comoção. Viu-se passar um pequeno grupo de soldados, que adentrou a matriz e apeou o sino da torre, sob o olhar resignado do padre. “Sinos poderemos ter outros, meus caros. As vidas que se perdem na guerra não se recuperam”.

Fundiu-se o sino. Muitos quilogramas de facas, facões, enxadas, ferraduras e tudo o que havia. Dentre eles, o caldeirão comprado aos ciganos. Nasciam armamentos variados, canhões, munição. E também o maior canhão que se veria em terras sul-americanas naqueles tempos: El Cristiano. 

Com a tomada da fortaleza de Humaitá pelas tropas do império, El Cristiano virou troféu das tropas brasileiras. Símbolo de guerra, de glória ou de massacre, pilhagem e vergonha, a depender de quem conta a história. O metal que foi caldeirão, fundido àquele que compôs um dia o sino da igreja, virou arma de guerra. Foi seu uso mais efêmero, embora seja ele a razão de que tombado, catalogado e exposto à visitação pública no Museu Histórico Nacional, possa (talvez) ter encontrado sua forma eterna. 

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