DOIS POEMAS DE NILTON CERQUEIRA
PRECE A SÃO SALVADOR
escuro cadáver caído
dado a ver a quem viesse…
largado no largo do tamarineiro
azedando a vizinha madrugada
desperta bruto
o sono periférico
de São Caetano
entretanto canto algum
da cidade imensa
seria santo pleno
diante de tal horror
nenhum santo o seria bastante!
São Salvador, inerte de morte
nesta hora profanada
soçobra inteiro!
sombra veloz
sanha insana
esgarça, assassina
a multissecular obra
sincrética, sincrônica
híbrida de crenças
entre trançadas de tradições
transmutadas em ritos tantos...
tudo rompido de súbito!
*
silêncio recluso nas casas
violado a tiros secos
tímpanos também feridos
no largo, estampidos descampando
terá sido tresloucado,
o ato que engatou a arma?
Terá origem no instinto,
O disparo do gatilho?
nenhuma ideia do que seja
bestial, ou inata sandice
traz alguma luz real
àquele corpo preto morto
“-embora seja loucura, há nela certo método”
que a lucidez do bardo distante
por um instante nos salve
e ainda por um instante mais...
instado a nos salvar
de trevas insondáveis
o bardo anunciou:
“o inferno está vazio e todos os demônios estão aqui”
*
qual mágica fórmula traduz
o trágico ocorrido no largo?
estreito, eis o retrato em tons:
viatura de polícia acesa parada
reluzindo colorida mescla
escarlate anelando anil em giros
um reflexo ainda opaco de cor
rubra, resta na poça
sanguíneo pigmento
extenso, estanque
*
estranho espectro ronda
roendo em pedaços
a paz precária dos corpos
salve-se agora mesmo
desse seu torpe fado,
Salvador!
renda-se à invenção brotando
porosa, em teus recantos recônditos!
no jeito ligeiro da língua
acentuar a ti, viva cidade!
assentando beleza
na tua carne imprecisa
perdida por entre tuas dobras
capitule enfim, oh São Salvador!
ao poder inconteste que escorre
inventivo
das suas vestes sujas
dos seus cortes infectos
de contradições e contravenções
e tantas adições outras
fora da lei lógica
ou limite rígido
rogo-te, São Salvador!
Explora cada caco teu
contraído, acordado
pela pulsação galopante
dos seus órgãos dispersos
na deriva viva da tua gente
resiste firme, São Salvador
à tentação bárbara que entranhas em ti!
*
Quão dessemelhante és, Salvador
(Já cantou um outro próximo bardo)
do fantasma triste, invasivo
que traz tanta tormenta
à tua calma água de baía
adentrando a cidade baixa ao mar
fria anestesia ao viço
que habita teu baixo ventre...
este fantasmático vulto
chega até tua adensada liberdade
(bairro matriz, albergando tantos)
tantos pedaços quanto
aqueles outros
quedados naquele corpo ao léu
sob o céu azeviche de São Caetano
largado no largo do tamarineiro
(será deva vu,
isso que agora assola?)
*
aquela cacofônica noite
compõe o soteropolitano
espírito do tempo?
ou é mal encosto de animal predador?
seria aquele preto só presa,
corpo expiatório
de um ódio inominável
no catálogo da cidade?
*
Encarnasse um Eliot fingido
em qualquer poeta
contemporâneo baiano loquaz
quase diria:
oh, Bahia, deixa estar, vivo
o corpo que tens!
deixa trovejar teus fantasmas
depois retalhe-o em finos extratos
e muito misture suas
mínimas partes
E com fragmentos tais
escora tuas escuras ruínas
aceita esta presença em eco
dos fantasmagóricos açoites,
mas distorça ao máximo seu som
e acolha o melhor que aí ressoe!
*
oh, São Salvador, desfaça-se
desta desfaçatez que ora grassa
inventa mil milagres que te redimam
reduzindo a ferocidade que em ti atua
a golpes de acasos, a lances fé e de dados
captados em sentido aberto, feminino
compósito plural feito desse pó
que há de se espalhar, delicado
na tua pele, oh pólis!
Prática alguma alcança
Do real, a raiz
O acaso em si espanta
Certezas, no que se diz
Esvaziada a permanência
Resta então
Suspensa
Inusitada questão:
O nome iça a coisa,
Ou a coisa some
Se advém um nome?
À deriva,
Aberto num umbral
Resta ao homem a viva
Aposta temporal
Cartas lançadas!
Florescem figuras
Diversas
Cada qual busca
Fazer com o eterno
Um elo
Profeta prolonga o porvir
(Um além para sempre ali)
Pajé venera o passado
(protegendo assim seu fado)
Poeta age na brecha
Do presente que penetra
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