SETE POEMAS DE SIDNEI OLÍVIO
LINHA DE CENAS
um corpo que nos reúna –
imagem única no espelho.
nua sobre minha
superfície
sem o liame das retinas.
acidente do contraste
por trás do cinismo
(lacuna imensurável
da história de sempre.)
você olha para a foto na
estante
e relembra a puerícia:
o princípio de tudo ali
a partir de uma impressão
e o final antecipado
pelo indócil pacto com a
vida.
INCLINAÇÃO À LUZ
como se a manhã
abrisse em silêncio
interminável fosso da
noite
e fosse a luz num
instante
verdade consagrada
pelo estupor do delírio.
como se o brilho dos
metais
não fosse discrepante
à pedra que os afia
e o dia a clarear
diferenças
ascendesse aos céus
corpos sem asas.
VARIAÇÕES SOBRE O VAZIO
frases entre deboche e
angústia -
lâminas a cortar rente a
pele
veias sangrando
despedidas
tudo parece tarde demais
quando o dia nos escapa
pelo giro dos ponteiros
vida que desliza
sobre restos do passado
na existência do que restou:
algo único e improvável
vazio da idade sob os pés
perfurando horas inéditas
diante do ilusório
partir de uma ausência
é o caminho que se abre
na direção oposta
à solidão que nos prende
pelos nós da palavra
que o vento leva e traz
olhos, bocas, nomes
feito esculturas de areia
TRISSILÁBICO
ouvi no amanhecer
o canto do bem-te-vi
soletrando as horas
miragem na penumbra
sopra pelos vãos da
janela
tessitura singular de
narciso
verso que evapora
no lume tênue da língua
sonoridade virtual da
pena
todo poema é invenção
qualquer palavra um ruído
que se abre para o
silêncio
como no ensaio da fome
o pássaro perde a voz
no átimo fugaz de um
inseto
PÓS-MODERNIDADE
o novo é a forma latente
daquilo que não se
revelou
pelo olhar da
transformação
(no espelho do lago
reflete-se apaixonado
o patinho feio)
***************
chove na cidade
sob trânsito intenso
ruas se desmancham
TRANÇAS
DO PASSADO
a
avenida espraia como o fantasma do rio inunda os arredores numa tarde de verão.
logo
ali na perpendicular da última rua, onde o centro se esgota. renasce na
confluência da vazante aos pés do viaduto.
seu
duro leito é devastado pela impaciência dos anos à paisagem que desbrota. lineares
trilhos de ferro. estação prestes a ser tombada ou demolida.
(a
paisagem:
resquícios
de arbustos que se fixaram nos vãos. restos de lixo. papéis trazidos pelo vento
que balançam as folhas dos anos.)
um
desvelo de praça de geometria escalena abriga pessoas entediadas a espera dos
ônibus entupindo o meio fio.
à
noite é porto de putas e parto de histórias. como a vida dos passantes
embebidos de ilusão cruzando a rotina sem fim.
nada
muda ou no âmago se transforma. nem mesmo as lembranças, tranças do passado, do
nativo menino que estrangulou Lavoisier.
PANFLETOS DO PORÃO
conhecia o mundo pelas páginas dos livros quando
resolvi medir distâncias. aventura de ser diferente no acrílico meio dos
sentimentos comuns.
a dúvida na primeira esquina. sussurros cifrados
e verbos irregulares na boca mordida. penúria das manhãs silenciosas (como se a
vida acontecesse apenas do outro lado.)
naquele tempo o medo era outro: perder a razão
para a rima e os dedos ao apontar estrelas. mas havia para as coisas uma saída.
poesia. bares. avenidas. uníssono ruído de janelas se abrindo.
hoje envelhecemos todos sem perceber a realidade
escapar dos livros de história. e recriar o ódio enterrado num canto escuro
dentro de nós.
agora só há frestas e incertezas. dívidas não
saldadas pelo disfarce da impostura. os bares viraram igrejas. janelas se
fecharam. avenidas intransitáveis num fluxo sem direção.
a poesia, entretanto, nunca deixou de ser
andante, como um cavaleiro a esgrimar utopias.
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