TRÊS POEMAS DE CARVALHO JÚNIOR


MÃE NÊGA


depois de dois milênios

debaixo da mesma pedra 

que escondia um cascudo 

em alto perigo de extinção, 

Mãe Nêga dos Cipós acorda.


a pele não lembra de dor.

ferida é apenas um sonho. 

toda rija e alta na postura,

toca uma harpa de barro

e sorri em língua estranha. 


Mãe Nêga gosta das penas

pardas da saracura-do-mato,  

da fogueira de pirilampos

que arde nos seus cabelos.


Mãe Nêga é uma mãe-d’água,

mãe de um mundo em argila,

onde não há calos de mágoa,

onde nascer é muito antigo.   


Mãe Nêga cospe nas faces

da morte, dança em roda

a canção do ineterno dia,

parece uma índia mansa,

a mãe negra e humilhada

do poeta Gonçalves Dias.  


Mãe Nêga tem peixes 

atravessando o corpo

como uma personagem

na tinta de Afarin Sajedi. 

— Mãe Nêga, vem me buscar!

— Mãe Nêga, vem me tirar daqui! 


FAROL


dúvida dentro do olho:

a sabiá no semáforo,

pássaforo ou semássaro?


JORRO


catarata é quando

toma banho o rio 

na criança-acrobacia.  


TEORIA DO HAICAÇU


quero um poema que possa flertar-flechar, fecho-éclair com o haicai, mas que tenha um sabor de babaçu, a substância da semente na sobrancelha da asa do azulão. quero um brinquedo de morfemas que crie fendas nos muros e germine pelo caminho a delicadeza dos seus grãos. não se trata do haicai de bashô ou de issa, e sim de um haicai nu, numa rede entre palmeiras, inventando, dentro dos olhos, novos alagadiços. não se busca a fruta haicaída de guilherme de almeida ou do paulo leminski o haicatatau, e sim um poema de três pernas que faça o que quiser, com ou sem régua, cante, com alice, benedita e millôr, com a potência de um urutau. ponho a mão em minhas feridas com o haicaçu, a redondilha dele se equilibra numa rodilha que carrega uma bilha com o íntimo untado de cupuaçu. vida longa ao haicai do sertão, da tinta do urucum, sonhando a sílaba na ginga de gorjeios de uma invisível inhambu. o meu haicanto é de pássaro nos galhos do vento. a minha palavra bifurca, trifurca, enforca, revive o bico-de-agulha, na fraternidade com o delírio de dyl, o nervo da nuvem de neurivan, o labirinto de aílton, os silvos de silvana e os voos do sanhaço-cinzento. 


Carvalho Junior


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