TRÊS POEMAS DE NILTON CERQUEIRA









IDENTIDADE

 

aquele branco

fosco do olho

de um cego preto

me mirava

fundo, alcançou

o oco que habita

este branco

corpo afeito

à imagem de mim

 

 

CAOS NOS TRÓPICOS

 

I

 

entorno todo queima

ardem olhos

fumaça e lástima

caules ainda vivos urgem

 

onde estão os anjos

caídos da ânsia

de qualquer socorro

à mata feita inferno?

 

promessa de salvação

nebulosa anestesia

braços já exaustos

tudo extinto em calor

 

guincho d'água

mãos impotentes

se apaga em meio

ao fogo obsceno

 

voluntária brigada

luta desigual

contra perverso

cálculo de descaso

 

II

 

figuras anímicas

de cabeça pra baixo

como aquele bicho

chamuscado, ali

 

como outros

restos de troncos

que habitam brasas

incansáveis

 

tão duradouras

quanto este vento

escaldante

de arrasto oeste

 

quanto estes

sonoros creptos

de pau seco

queimado

.

quanto este

chacoalhar

de cobra coberta

em preto pó

 

III

 

Oh Deus,

embaçado

entre labaredas,

clamo a ti

 

(ainda que tu sejas

só o vácuo

com que te revestem

os ateus!)

 

restitua à flora

fecundo frescor

que tanto anima

humanos milênios

 

posto que agora

grassa no ar

este estado último

de fervura

 

sem sinal de vida

sem final à vista

insuportável

espetáculo

 

exposto em madeira

consumida até exalar

da matéria em dor

vapor podre!

 

***

 

verso

concreto

sorve

restos

fratura

sílabas

salva

no osso

da palavra

sua nervura

...

verso

concreto

em estado crítico

sem conserto

contorce

intelecto

até torná-lo

leve olor

dançarino

contra o tédio

...

verso

concreto

converte-se

pá de hélice

corta crenças

até impuro pó

pá de cal

sobre a calma

das letras tomadas

como amuletos


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