OITO POEMAS DE SIDNEI OLÍVIO

 













GALO-DA-CAMPINA

 

A aridez do planalto

seca a voz enternecida.

 

No rasgo da boca

palavras turvas

 

ofuscam o tempo

nesse mundo real.

 

Inverossímil manto

cobre o mapa do horizonte –

 

derretido espetáculo

sobre a face da verdade.

 

Da janela que espreito a rua

ecoa um grito derretido

 

e das cinzas do fogo

que tudo consome, nos salva

 

: ouçam o bater das asas

do pássaro em voo.

 

RENTE À HORA

 

O dia termina como inicia –

repleto de intenções

e escolhas:

 

o equilíbrio das cores,

prefácio que explica a obra,

a eterna dúvida do fim.

 

Meio-termo entre poesia

e prosa, cinza do céu,

garoa fina.

 

Esperança do beijo,

amor rente à hora,

sina cercada de aço.

 

Um rosto desconhecido:

troante desejo

deste abraço mudo.

 

FACTUAL

 

Nada pior do que a certeza

Arrisco um olho ao risco

do espaço desabitado

astronave rompendo o código

do corpo que se ampara

à borda do abismo

 

Ensaio a aspereza

o feito intraduzível da ave

que se lança sobre o tempo

dos juízos obscuros

(a tirania do voo)

 

e sepulta a sina

o dado o lance a luz

necessária para irradiar

acima da redondilha fóssil

o rendilhado tecido do acaso

 

(finas tessituras abertas à dúvida

sem o fascínio das algemas

e do encanto à liberdade póstuma)

 

Eis o papel em branco

a mudez de passagem

fria nudez diante do vago

que forja a eternidade do grito

 

RITO DAS GALÁXIAS

 

noite morta

no ar um cheiro tardio

trança a cortina do quarto

 

silêncios alternados

contemplam a essência do medo

transladam o sul o som o sol

 

inútil deter aparições

que surgem flutuantes

no cenário lúgubre do espaço

 

corpos-silhuetas brilham

em dispersão sonora

da performática narrativa

 

sobre a cosmogonia do giro

que atravessa idades

espero pela hora do anonimato

 

elíptico gesto

que me leva ao teu colo

e faz do amor satélite

 

VERDES PALAVRAS A DELMORE SCHWARTZ

 

I

Atmosfera invadida pelo cheiro da dama-

da-noite no rebentado cacho de esferas

a desabrochar brancas pétalas 

numa profusão sutil e dispersa

por sonoras trovoadas escondidas

até que a chuva densa dê fim

ao cenário de fragrâncias intempestivas

do jardim.

 

II

(No verde-escuro da manhã

antes do sol ser destino apenas

a sensação de aromas e renascimento.)

 

III

A primavera que desponta a natureza

das sementes submersas no solo

em silêncio confronta o mistério (quase

um ardil) da estação que antecede o ciclo

nascituro em dias também escuros medidos

pela distância do sol desde o primeiro

giro da terra ao redor de si mesma.

 

IV

Por ver o tempo renovado ecoando

a manhã na verdura modelar dos gramados

um caminho sem distância que nos consinta

os desejos desprezados no inabitado

da noite que gesta o broto à luz amarela

dos braços crucificados do cristo

de Gauguin.

 

V

Agora que pouco falta ao que esperamos

seja a nova roupagem do galho desnudo

das árvores de grande porte e toda sorte

do vento das aves e do preciso pouso

de peludos insetos (a espalhar ornamentos)

você poderá tocar as pétalas no instante

em que perceber a paisagem no lugar de origem

sempre no seu próprio tempo gerações

sucedendo-se e algo quase extinto quase

solitário (feito eco que se multiplica)

dirá que o tempo não dará conta

de tudo nem as palavras guardarão

o registro do sopro da vida que se move

na órbita do orvalho.

 

 

*******

 

chão de primavera

lagarta desatenta

fome dos pardais

 

 

HERANÇA

 

não insista pelo retorno retornar

o trânsito entrecruza destinos

e flutua entre crepúsculos de sonhos

onde tudo é extemporâneo

(a realidade existe

somente no espaço que a contém)

 

da janela pendida sobre a margem

de ritos e ruas violadas

não deseje tantas coisas desejar

 

aves voam para o sul

e voando nada ensejam

senão o espírito imaculado

que se aninha em comunhão

 

eis perdido elo entre passados

(gritante testemunho

do ciclo dos pterossauros)

 

gesto solitário erguido das cinzas

do desentranhado verbo

 

o verbo incomum e exposto

a que outros verbos respondam

do edênico jardim

 

mesmo que entre pedras e perdas

sejam as palavras o secreto caminho

aos segredos mais íntimos

do ventre herdado

 

a imagem inaugural

aquela que no tempo flui

em ambígua face de espera

e desespero

 

CLARÕES DE ABISMO

 

Estranho suor na tez embalsamada

escorre feito lágrimas

sobre coroas de fúcsias e palmas

camuflando o corpo rígido –

 

espectro de manchas azuladas

que nenhum sol desvanecerá.

Anjos e demônios volitando

entre os portais enfumaçados

 

se misturam aos trajes negros

até que a fuligem repouse.

Aos poucos todos se aproximam

da couraça humana a medir

 

sete palmos dentro da terra fria.

O cortejo se retorce

traído por rasos leitos: a lápide –

seres fincados em outra vida.

 

A cidade gira em seu transe:

paredes de arenito brotam e passam

(o tempo em sentido horário

afronta o passado.

 

Herança ancestral a casa

vazia de qualquer sortilégio

prestes a tombar sobre o sólido

das texturas entrelaçadas no mundo.)

 

Na poltrona gasta

abaixo do antigo relógio

a aranha tece o verdadeiro nome

para um inverno de pedra.

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